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"A vergonha de confessar o primeiro erro nos leva a muitos outros."

La Fontaine

Naquele tempo, havia muitos quintais e lotes vagos. E era tudo arborizado, tanto em nossa rua como em todo o bairro.

Cada menino trazia sempre o seu bodoque no bolso e, junto com ele, um punhado de munição: cinco ou mais pedras do tamanho de uma jabuticaba.

Quando aparecia uma oportunidade – isto é, o dia todo –, fazíamos pontaria e alguns pardais, mais do que depressa, iam desistir de viver.

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Todos eram bons do bodoque, matavam os seus pardais. Todos, menos eu.

Por mais que eu caprichasse na pontaria e me aproximasse da vítima, não consegui atingi-la. A pedra passava por cima, por baixo, de lado. Às vezes, o pardal nem se dava ao trabalho de fugir. Continuava no mesmo lugar.

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Tinha a impressão de que me gozava, na certeza de que não corria nenhum risco. E não corria mesmo.

Aí vinha a humilhação. Os companheiros debochavam, riam na minha cara.

Eu guardava tudo isto, uma raiva muda, para descontar mais tarde no futebol, distribuindo pisadas e pregos a granel.

Um alívio temporário. O que eu queria mesmo, acima de tudo, era também matar o desgraçado de um pardal.

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Muitas vezes ficava no fundo do quintal, sozinho, treinando a pontaria. Punha uma caixa de fósforo numa forquilha de jabuticabeira, mirava bem e – pimba – errava o alvo.

Trocava o bodoque, mudava de posição: a caixinha continuava no mesmo lugar, intacta.

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Foi assim, até que, um dia, eu estava no fundo do quintal. Mas sem bodoque, sem nada, desarmado. Não me lembro do que fazia. Sei que estava lá, no fundo do quintal, quando um pardal pousou na quina da coberta. Era um pardal como os outros. Fingi que ia arremessar alguma coisa contra ele, e o pardal permaneceu quieto na quina da coberta. E lá ficou.

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Busquei dentro de casa o bodoque e voltei para o quintal. O pardal ainda estava lá, tranquilo, indiferente.

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Escolhi então uma boa pedra, aproximei-me uns passos, agachei-me no chão, fiz tremenda pontaria.

Só vi quando o pardal rolou coberta abaixo e caiu do outro lado, onde tinha um terreno vago.

Saí correndo feito um doido, atravessei o portão e olhei de um lado e outro, a fim de ver se havia alguém da turma na rua.

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Eu queria que todos vissem. Que todo mundo soubesse que eu matara um pardal. Não havia ninguém na rua.

Continuei correndo, dobrei a esquina e entrei no lote vago, direto no lugar onde eu supunha que estivesse o pardal. O pardal morto.

Enfiei a mão no mato, justamente onde o pardal caíra do telhado.

Mas aí houve um problema: o pardal estava vivo.

Ou melhor: agonizando, com seu pequeno coração de pardal pulsando atrás das penas arrepiadas.

Fiquei com ele, piando, na minha mão.

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Sem saber o que fazer, desesperado, lancei-o de encontro ao muro.

Mas, na afobação em que estava, ele me escapuliu da mão, e ficou piando no chão, no meio do mato.

Apanhei-o novamente e joguei-o no muro.

Houve apenas um batido surdo e o pardal caiu de vez, inerte.

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E não piou mais.

Aliás, piou, sim.

E continua piando dentro de mim até hoje.

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Wander Piroli; Odilon Moraes (il.)
O Matador
Editora Leitura, 2008

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Os comentários estão fechados para esta entrada de blog

Comentário de Marta Maria (adm) em 27 fevereiro 2022 às 1:15

O mal que fazemos as pessoas ou aos animais, refletem sempre na nossa consciência, (remorso) portanto procuremos fazer nossa existência ser boa e significativa e não demostrar que também somos capazes de fazer maldades para justificar a nossa incapacidade.

Comentário de Margarida Maria Madruga em 26 fevereiro 2022 às 22:33

Há feitos para mostrar aos outros que não compensam para nós mesmos.

Comentário de Conceição Valadares em 26 fevereiro 2022 às 13:48

Adul me desculpe mas destetei este texto

Comentário de Elodina Nunes em 26 fevereiro 2022 às 13:43

Bom dia meu querido amigo muito lindas estas imagens, eu acho melhor falar verdade do cometer erro. bjssss

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