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Daniel era um sem abrigo que vivia mesmo do outro lado da nossa rua, num beco sem saída, numa espécie de casa improvisada. Com efeito, Daniel vivia há muito tempo dentro da carcaça de um carro abandonado.
Todas as manhãs o via da janela do meu quarto: ele arrumava as suas coisas e depois ia embora, cheio de sacos. E voltava à noite, ainda mais carregado.
Os nossos vizinhos diziam que Daniel estava ali há muito, muito tempo. Mas ninguém sabia de onde vinha nem por que razão estava condenado a viver na rua.

Mal rompia o dia, Daniel ia lavar-se à fonte, e levava num balde alguma roupa suja. Às vezes, falava em voz alta e a minha mãe, que estava na cozinha, perguntava-me:

— Com quem está a falar o Daniel?
Mas Daniel falava sozinho, fazendo companhia a si próprio.

Quando eu ia para a escola, via-o a vasculhar com a cabeça metida no contentor do lixo. Tirava de lá as coisas mais incríveis: roupas, livros, jornais...
Uma vez, tirou um velho candelabro. Pô-lo ao lado do carro e deixou-o lá ficar, apagado, durante muito tempo, debaixo de um candeeiro público aceso.
Na realidade, Daniel não falava nunca com ninguém e ficava sozinho quase o tempo todo.

Poucas e raras vezes o vi acompanhado por Lisa, uma senhora já idosa, igualmente sem abrigo, que trazia sempre consigo uma quantidade enorme de sacos cheios de roupa e de jornais. Quando estavam juntos, Daniel levava muito gentilmente os sacos dela e, pegando-lhe pelo braço, mandava parar os carros para ela atravessar a rua.

Para comer, Daniel ia, às vezes, à sopa dos pobres. Ia lá sobretudo em épocas festivas quando, para além de uma boa refeição, tinha direito a um copo de vinho e a alguns cigarros.
Mas não gostava nada do barulho da multidão nem da grosseria daqueles que, geralmente, estando dois ou três juntos, falavam e riam muito alto no grande refeitório, já depois de terem bebido um pouco. Assim, e a maior parte das vezes, preferia levar a comida num saco e ir comer sozinho no parque ao lado.

O resto do tempo, Daniel deambulava no meio dos transeuntes, olhava para as pessoas quando olhavam para ele, observava o trânsito com ar ausente, via as montras decoradas nos dias de festa, as pessoas que saíam do metro, o céu...
À noite, ia para junto da paragem do autocarro. E, até à última passagem do autocarro, Daniel observava os passageiros que desciam como se esperasse alguém.
Depois, voltava para o carro, arrumava as coisas que tirara dos sacos, instalava-se no banco traseiro e adormecia com a roupa vestida.

As pessoas diziam que ele era maluco: trazia a roupa rasgada e, mesmo durante o verão, enfiava diversas peças, umas por cima das outras. E, se o cumprimentavam, não respondia, mas olhava as pessoas com um leve sorriso que era, na verdade, a sua expressão habitual.
Algumas cumprimentavam-no, muitas evitavam-no.
A maior parte pensava que ele não era perigoso.
Daniel não aceitava nem dinheiro nem comida, mas apanhava sempre do chão algo que lhe pudesse dar jeito.
Os meus pais eram daqueles que por vezes lhe levavam alguma coisa: lembravam-se que outrora um nosso tio-avô deixara a casa para ir viver na rua.

Num ano em que o outono chegara de repente, carregado de vento e de chuva gelada, vi Daniel esfregar a orelha como se ela lhe doesse. Talvez tivesse apanhado frio...

Eu não tinha um chapéu suficientemente grande, mas tinha um cachecol vermelho com as cores da minha equipa de futebol, que eu guardava e mantinha pregado na parede.
Uma manhã, deixei-o cair perto do carro.
No dia seguinte, vi que ele o tinha na cabeça. Estava mesmo engraçado!
Ao vê-lo assim com aquilo na cabeça, as pessoas sorriam e as crianças gritavam:
— Bravo, Daniel, tu és um dos nossos!
Ou
— Força, Daniel!
Não sei se Daniel compreendia o significado das palavras deles, mas parava o que estava a fazer e olhava para eles a sorrir como se estivesse contente.
Pouco tempo depois, encontrou mesmo um chapéu no chão. Era um bonito chapéu, macio e quente que uma rabanada de vento tinha arrancado da cabeça de um homem grande e gordo.

O homem, primeiro gentilmente, depois de uma forma mais assertiva, pediu-lhe que devolvesse o chapéu. Por fim, como Daniel recusava, um polícia interveio: arrancou-lhe o chapéu das mãos e examinou-o.
Foi a única vez que vi Daniel irritado, a falar e a misturar a realidade com coisas sem sentido. Humilhado, continuou a protestar veementemente mesmo depois do homem, do polícia e das pessoas terem ido embora.
Por fim, depois de ter ficado um pouco no meio da rua, voltou para o carro.

E, da minha janela, durante toda a noite, ouvi-o a lamentar-se baixinho, com a cabeça entre as mãos. Cansado, acabou por adormecer.

Daniel também sabia rir, mas fazia-o sozinho e baixinho ao ler um jornal, sempre que tinha alguma ideia, ou escrevia alguma coisa...
Porque ele escrevia muito e em qualquer lado: as suas frases apareciam nos muros ou em folhas de papel que ele abandonava. E eu via que ele tinha uma bela caligrafia, fina, regular, de pessoa culta...
Escrevia poemas, frases misteriosas, muitas vezes a mesma: «Aquilo que se vê esconde o mistério da verdade.»

Um dia, quando eu estava na escola, Daniel foi-se embora. Diz-se que um homem com ar distinto se aproximou do carro. Depois, Daniel saiu da carcaça meio a dormir e foi vestir alguma roupa. E, sem levar consigo os sacos habituais, afastou-se, conversando calmamente com o tal senhor.

Desde esse dia, nunca mais ninguém o viu.
Quando a noite chegou, fiquei muito tempo à janela, à espera de Daniel. Sentia-me feliz ao pensar que a pessoa que ele esperava há tantos anos na paragem do autocarro tinha vindo – finalmente – procurá-lo.

Depois, um dia, fui ver o que Daniel tinha deixado no carro.
Já não havia quase nada. Mas… baixando-me, descobri uma coisa: a fotografia de um homem que parecia estar contente.

Paolo Marabotto
Daniel qui n’avait pas de maison
Paris, Circonflexe, 1995
(Tradução e adaptação)

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