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Fazia pentes, como outros homens fazem pífaros ou jogam cartas, porque gostava. E porque seu trabalho de carreteiro, costura de longas viagens e longas esperas, lhe deixava tempo vago.

Tirava então da sacola o pedaço de madeira escolhido dias antes ao passar pelo bosque ou catado à beira da estrada, e cantando e divagando, cheio de paciência, cortava com uma faquinha dente a dente, soprava a mínima serragem, polia os espaços apertados. O tempo escorria manso naquele fazer cuidadoso, deixando-lhe afinal um pente que daria de presente a quem bem o atendesse no caminho, já que ninguém comprava pentes no universo modesto em que se movia.

Haviam sido sempre de madeira. Até ele agachar-se junto ao regato para beber, e deparar com aquele osso. Pareceu-lhe primeiro um seixo, tão branco, polido pelo tempo ou pela água. Tomou-o na mão, girou-o entre os dedos. De que animal havia sido, impossível saber. Mas era tão prazeroso ao tato, tão rico com seus veios leitosos, que logo desejou moldá-lo, fazer dele um pente especial.

Era diferente trabalhar a matéria mais dura, sentia-se quase obrigado a obedecer‑lhe. Precisou da faquinha e de outros pequenos instrumentos que ia improvisando, precisou de lima para suavizar as asperezas, e de fogo para domar a curva do osso. Precisou de um tempo mais longo e de uma nova paixão para fazer os ricos entalhes com que queria adorná‑lo ao alto, duas garças de asas abertas, os pescoços em curva, os bicos apenas se tocando. Quando esteve pronto, o aqueceu com seu hálito e o esfregou longamente contra o pano da calça, até vê-lo brilhar, morno como se vivo na sua mão.

Guardou-o esperando que a viagem o levasse novamente à sua aldeia, pois só à sua filha pastora o queria dar. Ficaria bem, pensou, metido na sua cabeleira morena.

Tão encaracolado era o cabelo da jovem, e tanto, que por mais que o cuidasse estava sempre emaranhado. Bastou, porém, afundar entre os fios o pente que havia ganho do pai, para que os nós todos se desatassem sem que se desfizessem os cachos. Passou-o de alto a baixo repetidas vezes, tomada de prazer pela inesperada mansidão. Depois tornou a passar. Nada travou o fluir dos dentes.

E não querendo separar-se dele ao sair para entregar o leite das suas ovelhas, suspendeu na nuca a cabeleira domada, deu-lhe uma volta com a mão, firmando-a no alto com o claro voo das garças.

— Que bonito esse pente! — encantou-se a primeira jovem com que cruzou no caminho. — Dá ele para mim?

— Não dou. Nem para você, nem para ninguém.

— Que coisa rica! — elogiou a segunda que passou por ela. — Onde você o achou?

— Quem me achou foi ele.

Naquela noite, só tirou o pente para dormir.

Ao nascer do sol, foi com suas ovelhas ao pasto, tocando-as pela encosta. E reparando na lã empelotada que lhes cobria o dorso mais parecendo um tapete do que uma pelagem, “coitadas — pensou —, que vestimenta tão desconfortável”. Num gesto, tirou o pente dos cabelos, e mal o havia aproximado do flanco da ovelha mais próxima, já a lã ordenava seus fios como se tivesse sido cardada. Riu surpresa a jovem, limpando o pente com a mão.

Incrédula ainda, caminhou até o burrico que pastava adiante e lhe penteou a cauda, avançou até a moita emaranhada do espinheiro e lhe destrançou os galhos. Sim, concluiu surpresa, seu pente desfazia qualquer nó.

Voltando para casa, sorriu sem responder quando a filha do padeiro lhe perguntou "É feito de quê, esse pente que agora você não tira do cabelo?".

Domingo seguinte, dia de mercado, uma discussão explodiu entre dois artesãos. Insultos, ameaças, veias inchadas no pescoço, e a multidão ao redor, ávida para presenciar uma briga. Mas briga não houve. A pastora havia se aproximado, e acariciando o pente acima da nuca percebera que as palavras certas, as palavras capazes de acalmar os ânimos lhe vinham à boca como se sempre as tivesse conhecido.

Não foi o único fato dessa natureza. Houve depois um confronto na divisão de um rebanho, e uma desavença entre sogra e nora. Ambos, ela apaziguou. A partir daí, sua fama de desfazedora de nós abriu caminho e a qualquer desacordo, enfrentamento, entrevero, a mandavam chamar. Não só no seu povoado, como de distâncias ao redor.

A pastora que havia vivido quase sempre só, mais presente para as ovelhas do que para seus semelhantes, se via agora rodeada de gente que vinha por ela a qualquer hora, de perto ou de longe, a pé ou de carroça, para que dissesse as palavras capazes de restabelecer a serenidade.

Só à noite, já tarde, conseguia estar sozinha em sua casa. Então sentava-se diante do fogo, tirava o pente dos cabelos e delicadamente, colhendo um a um entre os dedos, entregava às chamas os nós que ele havia retido.

Passaram alguns verões. Alguns invernos passaram. Um dia, a pastora se deu conta de um peso que não percebera até então. Nos ombros, talvez. Ou na caixa do peito. Olhou pela janela, havia gente à sua espera lá fora, pessoas vociferavam, algumas haviam chegado ainda na madrugada. Ao contrário do que fazia todas as manhãs, não abriu a porta aos ruídos, às exigências. Escutou o silêncio da casa, no silêncio soltou os cabelos, sacudiu a cabeça repetidas vezes para senti-la mais leve, deslizou os dedos entre os fios, quase desejando encontrar o emaranhado de outros tempos. Depois debruçou-se sobre a água da bacia em busca do rosto que havia sido seu. E fechou os olhos buscando-o dentro de si.

Parecia haver transcorrido muito tempo quando os abriu, embora a luz da manhã atravessasse o chão no mesmo lugar onde estava antes. Olhou ao redor apropriando-se de cada objeto, cada canto que estivera esquecido enquanto ela cuidava dos outros. O pente destacava-se claro sobre a mesa. Ela o tomou, e usando a força das duas mãos o partiu ao meio.

Dez dentes de um lado, dez dentes do outro, duas garças para sempre afastadas. "Que cada um cuide dos seus nós — disse ela em voz alta como se houvesse ali alguém para ouvi‑la. — Eu cuidarei das minhas ovelhas."

Mansamente, pousou as duas metades do pente sobre as brasas que ainda ardiam.

Marina Colasanti

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