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unnamedpaz

Assim que descobri a leitura, a pequena livraria do senhor Manuel transformou-se num dos lugares mais mágicos do mundo. No início, ia com o meu pai aos sábados de manhã, mas depois passei a ir sozinha sempre que recebia dinheiro para comprar livros.

A loja era estreita e comprida com um balcão corrido a todo o comprimento. As paredes estavam forradas de estantes do teto ao chão, onde velhas lombadas desbotadas conviviam com livros mais recentes.

O senhor Manuel recebia-nos a todos com deferênciaM. S.Era baixo, de rosto comprido e boca pequena, que abria em suspenso enquanto escutava os clientes. O olhar acerado, onde eu lia sinais de inteligência, conhecimento e amabilidade, perscrutava-nos demoradamente, como se nos lesse a alma.

Dono de uma sagacidade ímpar, sabia interpretar um desejo vago, meias palavras ou um olhar que se quedava por instantes sobre uma lombada. Com uma surpreendente ligeireza de mosqueteiro, subia para cima do escadote e retirava, com gestos leves e espessos como o vento, um livro da estante.

Os breves segundos que antecediam a revelação do mistério faziam o meu coração bater mais depressa. Por fim, pousava cuidadosamente o livro escolhido sobre o balcão.

O senhor Manuel sabia sugerir o livro certo para cada momento.

Nas ocasiões em que não havia clientes na loja, encontrava-o de espanador na mão a limpar o pó das estantes, assobiando. Quando o via nas alturas pensava que o senhor Manuel era uma pessoa boa, que cuidava zelosamente dos livros até encontrar um leitor para cada um deles.

Tinha a largueza de horizontes das pessoas instruídas.

Eu era uma criança sempre em festa nos dias em que comprava um livro. Corria para casa e não saía do quarto até folhear a última página e reler duas ou três vezes a última linha, numa tentativa vã de adiar a despedida dolorosa.

A minha imaginação fértil vivia as aventuras e os desaires dos meus heróis.

Se lia as Aventuras de Huckleberry Finn, enfrentava com afoiteza os perigos do Mississípi sobre uma jangada, na companhia de Huckleberry e Jim. Se lia Os Desastres de Sofia, passava a ser a Sofia. Participei em inúmeros piqueniques clandestinos com as gémeas, celebrados à meia-noite na penumbra do dormitório do Colégio de Santa Clara. Vivi intensamente as aventuras e feitos extraordinários dos destemidos Cinco.

Era preciso muita coragem. Mas eu sobrevivi a tudo.

Quando voltava à livraria, levava o resumo do livro que lera já pronto no calor do coração, pois o senhor Manuel gostava que lhe fizesse um resumo da história. Debruçado ao balcão, escutava-me sempre com um entusiasmo juvenil, como se ouvisse aquele enredo pela primeira vez.

Por fim, dizia à guisa de recomendação, "se gostaste desse livro, também vais gostar deste".

E era sempre assim.

Um encadeado de histórias, um desfilar de personagens e aventuras que nunca cessava. Quando eu, com o meu espírito crítico, comentava que achara a história algo inverosímil, ele sorria com bonomia, dizendo que não era preciso acreditar numa história para se gostar dela.

Houve um período de tempo em que deixei de visitar a livraria. Uma amiga herdara de uma tia-avó uns livros antigos de lombadas gastas e folhas amarelecidas e, revelando já na altura um espírito empreendedor, vendeu‑mos por um preço compatível com as minhas poupanças.

Iniciei-me, assim, no culto de Barbara Cartland. Passei um mês a ler e a suspirar. Sofri muito com aquelas vidas apaixonadas, amores arrebatadores, segredos angustiantes e cantos de rouxinóis solitários. Não me esqueço também das tardes que passei de coração dilacerado a ler Amor de Perdição. Eu própria me comovia com o pathos do meu sofrimento imaginário.

Quando finalmente regressei à pequena livraria, esta estava fechada.

Durante o período da minha ausência, o senhor Manuel não resistira a um ataque cardíaco fulminante. Foram dar com ele inconsciente no chão da livraria, com os braços que embalaram tantos livros, tombados sem vida.

Mais tarde, alguém comprou a loja e transformou-a num café.

Nunca entrei nesse café.

Para mim, esse lugar permaneceria para sempre a livraria do senhor Manuel, esse grande cartógrafo da alma.

M. S.

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Os comentários estão fechados para esta entrada de blog

Comentário de Margarida Maria Madruga em 27 julho 2022 às 15:38

Eu curti muito as bibliotecas e livros fantásticos. Belo texto.

Comentário de Conceição Valadares em 23 julho 2022 às 22:43

Belíssima partilha Adul

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