Global Social

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A crise do clima foi incubada nos nossos regaços num momento da história em que as condições políticas e sociais eram singularmente hostis a um problema desta natureza e magnitude — o final da década de 1980, o ponto da explosão da cruzada para disseminar o capitalismo desregulado por todo o mundo.

Esta é uma história sobre má sincronização.

Uma das consequências mais perturbantes das alterações climáticas — a extinção — está já a desenrolar-se através daquilo a que os ecologistas chamam “discrepância” ou "dessincronia". É o processo em que o aquecimento faz com que os animais fiquem desfasados de uma fonte crítica de alimentos, particularmente em períodos de reprodução, em que não encontrar alimento suficiente, pode resultar em declínios rápidos de população.

Os padrões migratórios de muitas espécies de aves canoras, por exemplo, evoluíram ao longo de milénios de tal modo que as aves saem dos ovos precisamente quando certas fontes de alimentos como, por exemplo, as lagartas, são mais abundantes, providenciando aos pais amplos meios de alimentarem os seus filhotes esfomeados. Porém, como a primavera chega agora frequentemente mais cedo, as lagartas estão a nascer também mais cedo, o que significa que em certas zonas são menos abundantes quando as avezinhas saem do ovo, o que implica uma série de possíveis impactos a longo prazo na sobrevivência.

De igual modo, na Gronelândia Ocidental, as renas que chegam aos locais em que dão à luz começam a ver-se dessincronizadas das plantas de que se alimentam e de que dependem há milhares de anos, que crescem agora mais cedo graças à subida da temperatura. Essa situação está a deixar as renas fêmeas com menos energia para a lactação e a reprodução, uma discrepância que foi relacionada com a diminuição acentuada de nascimentos de crias nas taxas de sobrevivência.

Há cientistas a estudarem casos de dessincronia relacionados com o clima entre dúzias de espécies, de gaivinas-do-ártico a papa-moscas-malhados. Mas há uma importante espécie que não estão a estudar: nós. O Homo Sapiens. também nós estamos a sofrer os efeitos de um terrível caso de dessincronia relacionada com o clima, embora num sentido cultural e histórico mais do que biológico. A crise do clima foi incubada nos nossos regaços num momento da história em que as condições políticas e sociais eram singularmente hostis a um problema desta natureza e magnitude — o final da década de 1980, o ponto da explosão da cruzada para disseminar o capitalismo desregulado por todo o mundo. As alterações climáticas são um problema coletivo que exige uma ação coletiva a uma escala que a humanidade realmente nunca conseguiu atingir.

Esta dessincronia profundamente lamentável criou todo o tipo de entraves à nossa capacidade de reagir eficazmente a esta crise. Significou que o poder dos grandes grupos económicos estava em ascensão no preciso momento em que necessitávamos de exercer controlos sem precedentes sobre o comportamento desses mesmos grandes grupos económicos para proteger a Vida na Terra. Significou que regulação passou a ser um palavrão no preciso momento em que mais necessitávamos desses poderes. Significou que fomos governados por uma classe de políticos que só sabem como desmantelar e empobrecer as instituições públicas quando elas mais precisam de ser fortalecidas e reimaginadas. E significou que estamos a carregar o fardo de uma série de acordos de "comércio livre" que atam as mãos dos responsáveis pelas decisões políticas no preciso momento em que eles mais necessitam de um máximo de flexibilidade para implementarem uma transição energética em massa.

Confrontar essas várias barreiras estruturais que dificultam a transição para o modelo económico seguinte e articular uma visão cativante para esse estilo de vida pós-carbono é a missão crítica de qualquer movimento sério do clima. Mas não é a única tarefa em perspetiva. Temos igualmente de confrontar o facto de a discrepância entre as alterações climáticas e o domínio do mercado ter criado barreiras dentro de nós próprios, fazendo com que seja mais difícil encararmos esta crise humanitária premente com mais do que uns olhares furtivos e aterrados. Devido à maneira como as nossas vidas diárias foram alteradas, tanto pelo mercado como pelo triunfalismo tecnológico, faltam-nos muitos dos instrumentos de observação necessários para nos convencermos de que as alterações climáticas são de facto uma emergência – e falta-nos ainda mais a confiança para acreditar que um estilo de vida diferente é possível.

E não admira: quando precisávamos de nos unir, a nossa esfera pública estava a desintegrar-se; quando precisávamos de consumir menos, o consumismo apoderou-se de praticamente todos os aspetos da nossa vida; quando precisávamos de abrandar o ritmo e reparar nas coisas, acelerámos; e quando precisávamos de horizontes temporais mais longos, só éramos capazes de ver o presente imediato, apanhados no presente eterno dos nossos feeds constantemente atualizados das redes sociais.

Esta é a nossa discrepância das alterações climáticas e não só afeta a nossa espécie como também potencialmente todas as outras espécies do planeta.

A boa notícia é que, ao contrário das renas e das aves canoras, nós, os seres humanos, somos abençoados com uma capacidade de raciocínio avançada e, por conseguinte, com uma capacidade de nos adaptarmos mais deliberadamente — de alterarmos velhos padrões de comportamento com uma rapidez notável. Se as ideias que dominam a nossa cultura estão a impedir-nos que nos salvemos, está ao nosso alcance mudarmos essas ideias. Contudo, antes que isso possa acontecer, precisamos primeiro compreender a natureza da nossa discrepância pessoal em relação ao clima.

Naomi Klein
Um mundo em chamas
Lisboa, Editorial Presença, 2020

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Comentário de Margarida Maria Madruga em 10 fevereiro 2021 às 15:33

Pura realidade.

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