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Naquela manhã de primavera o inesperado aconteceu, o velho monge não conseguiu voar. Havia feito suas abluções, havia meditado longamente e longamente repetido as palavras sagradas. Havia elevado o espírito, mas o corpo, ah! o corpo não abandonara seu peso.
Com certeza, pensou o velho penitenciando-se, faltou-me a fé. E humildemente voltou a purificar-se na água gelada e, nu no ar cortante, orou até sentir-se tomado pelo calor de mil sóis.
Mas, luminosa embora sua alma, não houve meio do corpo pairar acima do chão. Onde, onde falhei? perguntava-se o velho do fundo da sua sabedoria. E não encontrando em si mesmo a resposta, envolveu-se no pano áspero que era toda a sua indumentária e, cajado na mão, saiu caminhando à procura.
Não precisou andar muito para chegar ao grande carvalho que se erguia perto do mosteiro. Ali, em fins de tarde, tantos e tão ruidosos eram os pássaros, que cada folha parecia ter asas. O velho olhou longamente os pássaros, àquela hora ocupados com suas crias, seus ninhos, sua interminável caça de insetos. Parecia justo e fácil que se movessem no ar. Talvez sejam mais puros, pensou. E querendo pôr à prova a pureza do seu próprio corpo, permaneceu por longo tempo de pé, debaixo da copa, até ter ombros e cabeça cobertos de excrementos das aves.
Porém aquele corpo magro e pequeno, aquele corpo quase tão leve quanto o de um pássaro, negava-se a dar-lhe a felicidade do vôo. E o velho recomeçou a andar.
Caminhando, olhava o céu ao qual sentia não mais pertencer. Ouviu o grito do gavião e o viu abater-se, altivo e feroz, sobre uma presa. Até ele, que agride os mais fracos, tem o direito que eu não mereço, pensou contrito. E mais andou. Viu o azul cortado por um bando de patos selvagens em migração. Lá se vão, de uma terra a outra, de um a outro continente, disse em silêncio o velho, enquanto eu não sou digno nem de mínimas distâncias. E mais andou. E viu as andorinhas e viu o melro e viu o corvo e viu o pintassilgo, e a todos saudou, e a todos prestou reverência.
O dia chegava ao fim. Sombras aladas cortavam a escuridão, morcegos e insetos cruzavam-se nas sombras. Ainda sem resposta e já sem forças, o velho monge sentou-se frágil sobre as pernas cruzadas, repousou as mãos no colo, meditou. Vaga-lumes acendiam por instantes o espaço à sua frente. Empoeirado, sujo, com pés e mãos cheios de impurezas, o velho ainda assim sentiu-se mais leve e abençoado do que havia estado de manhã. Seu corpo não ascendia. Pelo contrário, pesava mais sobre o solo do que pesa um pássaro pousado.
Mas aos poucos a paz iluminava intensíssima sua alma porque, do seu corpo, delgadas e pálidas como se extensão da própria pele, raízes brotavam, logo mergulhando chão adentro. Seu tempo do ar havia acabado. Começava agora para ele o tempo da terra, daquela terra que em breve o acolheria.
Marina Colasanti
Do seu coração partido
São Paulo, Global Editora, 2009
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Estava esperando um fim mais comum. Gostei. Surpreendeu-me.
Lindo texto, mas tão melancólico...
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