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Um pequeno exército de cavalos e mulas aventura-se todos os dias pelas escorregadias encostas e desfiladeiros dos Montes Apalaches, com os alforges carregados de livros. Os ginetes são, na sua maioria, mulheres, amazonas das letras.

No início, os aldeões do este do Kentucky, nos seus vales isolados dos Estados Unidos e do resto do mundo, observam-nas com ancestral desconfiança. Alguém no seu perfeito juízo cavalgaria durante o frio inverno por este território desprovido de estradas, terra de frágeis pontes que pendem sobre o abismo, e leitos de arroio onde as patas dos animais derrapam por entre cataratas de seixos?

As famílias dos condados da montanha são pobres e receiam tanto a autoridade como os criminosos. Só um terço deles sabe ler, mas até esses se assustam quando um desconhecido ergue um papel. Uma dívida por pagar, uma denúncia mal-intencionada ou um litígio incompreensível poderiam arrasar as suas escassas propriedades. Jamais o admitiriam, mas essas mulheres a cavalo inspiram-lhes receio.

O medo converte-se em surpresa quando as veem desmontar, abrir os alforges e tirar livros. Bibliotecárias a cavalo? Fornecimento literário? Começam a sentir alívio. Ninguém menciona impostos, tribunais ou despejos. Além disso, as jovens bibliotecárias têm um aspeto amigável.

Por volta de 1934, quando o projeto de combater o desemprego, a crise e o analfabetismo através de amplas doses de cultura financiada pelo Estado foi concebido, as estatísticas só registavam um livro per capita no estado do Kentucky, um empobrecido território montanhoso sem estradas nem eletricidade. Era impensável pôr em funcionamento um sistema de bibliotecas móveis em veículos, que tanto sucesso estava a alcançar noutras zonas do país. A única alternativa era lançar as aguerridas bibliotecárias pelas veredas dos Apalaches para levarem os livros até aos redutos mais isolados. Cada ginete percorria três ou quatro rotas por semana, com trajetos de até trinta quilómetros por dia.

Os livros, procedentes de donativos, eram armazenados nos postos de correio, barracões, igrejas, tribunais ou casas particulares. As mulheres, que levavam o seu trabalho tão a sério como os incansáveis carteiros da época, recolhiam os lotes nas diferentes sedes e distribuíam-nos por escolas rurais, centros comunitários e casas de camponeses. As suas cavalgadas solitárias não estavam isentas de cariz épico: os documentos compilam episódios de cavalos exaustos no meio do nada, de mulheres a continuar o caminho a pé, transportando o pesado alforge de mundos imaginários.

"Traz-me um livro para ler" era o pedido das crianças, sempre que viam as forasteiras partir. Mas as bibliotecárias a cavalo do Kentucky só conseguiam dar resposta a um décimo dos pedidos. Depois de vencerem os primeiros surtos de desconfiança, os montanheiros tinham-se convertido em ávidos leitores. Uma família chegou a recusar mudar para outro condado porque ali não havia serviço bibliotecário.

A afluência de livros melhorou a saúde e os hábitos de higiene na região: as famílias aprenderam, por exemplo, que lavar as mãos era muito mais eficaz para evitar cólicas do que soprar fumo de tabaco sobre uma colherada de leite. Os livros puseram os novos leitores em contacto com um tipo de magia que sempre lhes tinha sido negado. Os filhos letrados liam-nos aos seus pais analfabetos. Um jovem disse à sua bibliotecária: "Os livros que nos trouxeste salvaram-nos a vida."

Somos os únicos animais que fabulam, que afugentam a escuridão com histórias, que aprendem a conviver com o caos graças às narrativas, que atiçam as brasas das fogueiras com o ar das suas palavras, que percorrem longas distâncias para levarem as suas histórias a estranhos. E, quando partilhamos os mesmos relatos, deixamos de ser estranhos.

Afinal de contas, o que é uma história? Uma sequência de palavras. Um sopro. Uma corrente de ar que sai dos pulmões, atravessa a laringe, vibra nas cordas vocais e adquire a sua forma definitiva quando a língua acaricia o palato, os dentes ou os lábios. Parece impossível salvar algo tão frágil.

Mas a humanidade desafiou a soberania absoluta da destruição ao inventar a escrita e os livros. Graças a essas descobertas, nasceu um espaço imenso de encontro com os outros. De uma forma misteriosa e espontânea, o amor pelos livros criou uma cadeia invisível de pessoas que, sem se conhecerem, têm salvado o tesouro dos melhores relatos, sonhos e pensamentos ao longo do tempo: narradoras orais, inventores, escribas, iluminadores, bibliotecárias, tradutores, livreiras, vendedores ambulantes, professoras, sábios, viajantes, escravos, aventureiras, impressores.

Gente comum cujo nome, em muitos casos, a História não regista. Os esquecidos, as anónimas. Pessoas que lutaram por nós, os leitores, que somos o rosto do futuro.

Irene Vallejo

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Os comentários estão fechados para esta entrada de blog

Comentário de Marta Maria (adm) em 13 março 2022 às 1:43

É lamentável que a maioria das pessoas hoje em dia esqueceram-se de ler.
Quando lemos um bom livro temos muito a aprender, é como se o livro falasse e a alma respondesse.

Comentário de Margarida Maria Madruga em 12 março 2022 às 15:11

Maravilhoso tributo.

Comentário de Conceição Valadares em 12 março 2022 às 11:42

Uma pena que com os anos se tenha perdido o habito de ler um livro, dos muitos livros que li me tiraram da solidão e por vezes me mostraram o caminho. Obrigada Adul pelo belíssimo texto.

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