Global Social

unnamed-1

Um dia, na China, foi declarada guerra aos pardais.
— Os pardais são nossos inimigos! Comem o grão das nossas culturas. Temos de acabar com eles!
Irmão Mais Velho mostrou a bolsa cheia de bombinhas que o pai lhe dera para usar na guerra contra os pássaros.
— Eu gosto dos pardais — disse Ming-Li em voz baixa ao irmão.
Olhou para o céu e tentou imaginá-lo vazio e silencioso.

Os pais também estavam a falar daquele plano.
— O celeiro da aldeia está vazio mas, para o ano que vem, estará cheio!
— Pai, podia ajudar-te a plantar mais sementes na primavera — disse Ming-Li. — E a arrancar as ervas daninhas, e...
— Tu não és camponesa — respondeu o pai acariciando-lhe a cabeça. — Ainda és uma menina!
Naquela noite, Ming-Li não conseguia adormecer. Havia uma coisa que a preocupava e não conseguia deixar de pensar nela. Aproximou-se da esteira de Irmão Mais Velho.
— E como é que os outros pássaros vão saber? — sussurrou, enquanto lhe sacudia o ombro. Irmão Mais Velho esfregou os olhos e franziu a testa.
— O nosso barulho não vai assustar os outros pássaros? E se os rouxinóis se vão embora? Ou as andorinhas, ou... a nossa pomba?
— Minha querida irmãzinha, o teu cérebro é tão pequenino como o de um pardalito! — disse o irmão em voz baixa. — Os planos do nosso Chefe são sempre perfeitos. Foi o que nos disseram na escola. E agora vai dormir!

unnamed-2
Na manhã seguinte, um grande alvoroço acordou Ming-Li. Correu até à janela: um mar de gente enchia as ruas da aldeia, batendo em gongos, pratos e tambores, e gritavam. Os petardos estalavam como tiros.
— Agasalha-te — disse a mãe, dando-lhe uma bolacha de arroz.

Ming-Li e o irmão saíram. Os vizinhos corriam pelas ruas e faziam tanto alarido que o chão tremia. Só olhavam para cima à procura dos pardais inimigos, não prestando atenção a mais nada; nem sequer tentavam evitar pisar a menina.
Ming-Li agarrou a mão do irmão, que a levou para bem longe da multidão e a conduziu ao pomar. Irmão Mais Velho acendeu um petardo debaixo de um damasqueiro. PUM!

unnamed-3Uma nuvem de pardais levantou voo e pousou numas pereiras. O irmão seguiu‑os e acendeu outro petardo. Ming-Li tapou os ouvidos e fechou os olhos com muita força, mas parecia que lhe rebentavam faíscas douradas dentro da cabeça. Queria fugir, voando como um pardal, para qualquer lugar alto e seguro.
Ming-Li saiu a correr, mas quando chegou ao caminho viu algo cair no chão. Um grupo de vizinhos também viu e chegou a correr.
— Morreu de susto! — gritou Ming-Li. — Temos de parar!
— Os pardais mortos não comem grão! — gritou um velho junto dela. Caíram mais pássaros do céu.
— Viva! Estamos a ganhar a Guerra contra os Pardais! — exclamaram os tontos.
Ming-Li correu até casa e subiu ao telhado para ver como estava a sua pomba. A gaiola estava vazia: Irmão Mais Velho devia tê-la libertado.
De repente, uma pomba prateada aproximou-se.
— Voltaste!
Ming-Li estendeu o braço para que pousasse nele. O pássaro esvoaçou por instantes, e depois caiu no telhado.
A pomba jazia imóvel. Só o coração batia por debaixo das penas rosadas do peito, mas, pouco depois, também o coração parou.
Os olhos de Ming-Li encheram-se de lágrimas. Escondeu o pássaro dentro do casaco, desceu do telhado e voltou ao pomar.
Irmão Mais Velho estava debaixo de uma nogueira, prestes a acender outro petardo.
— Espera — disse Ming-Li mostrando-lhe a pomba.
Irmão Mais Velho empalideceu e deixou cair a bomba.
Enterraram a pomba debaixo da nogueira.
— O barulho da batida matará todos os pardais da China. Talvez até todos os pássaros. Temos de fazer alguma coisa — disse Ming-Li. — Ajudas‑me?
Irmão Mais Velho assentiu com os olhos vermelhos.
— Mas ninguém pode desobedecer ao nosso Líder. O que podemos fazer?
— Pode ser que alguns pardais que caíram ainda estejam vivos, como estava a pomba. Podíamos salvá-los.
E assim foi. Quando via um pássaro cair, Ming-Li corria, mas chegava sempre tarde. Porém, quando os candeeiros começavam a acender‑se, um pássaro pardo caiu junto a um marmeleiro e durante um momento bateu as asas. Ming-Li encheu-se de esperança. Correu até à árvore e encontrou o pardal, que tentava erguer-se. Apanhou o pássaro e escondeu-o dentro do casaco.
— Agora estás a salvo, amiguinho — segredou-lhe.
As pessoas regressavam a casa, felicitando-se pelo êxito:
— Mais dois dias e não haverá nem um pardal em toda a China!
Ming-Li apertou um pouco mais o casaco. Sentia o pequeno coração do pássaro bater contra o seu. "Vai haver, vai!", prometeu a si mesma.
Encontrou Irmão Mais Velho entre a multidão.
— Só um — disse-lhe, deixando-o dar uma espreitadela dentro do casaco.
Levaram o pequeno pardal para a gaiola da pomba. Ming-Li encheu o recipiente com água e desfez a bolacha de arroz.

No dia seguinte, Ming-Li e Irmão Mais Velho saíram a correr para salvar mais pássaros. Se aparecia algum vizinho quando Ming-Li corria a resgatar um pardal, Irmão Mais Velho distraía-o.
— Olha! A oeste! Um bando de inimigos!
Durante todo o dia caiu uma grande quantidade de pássaros.
— Parecem gotas de chuva — disse Irmão Mais Velho. — Está a chover pássaros!
— Não — disse Ming-Li. — São como lágrimas. O céu está a chorar pássaros!
unnamed-6Ao anoitecer tinham resgatado mais quatro pardais.
Ao terceiro dia, o céu estava quase sem pássaros, mas, ainda assim, as pessoas continuavam a gritar e a bater nos gongos, pratos, tambores. Ming-Li e Irmão Mais Velho só encontraram mais dois pássaros com vida.
— Sete pardais — disse Irmão Mais Velho —, mas podia já não haver nenhum!
Naquela noite, Ming-Li não conseguiu dormir. Em breve, os pardais precisariam de espaço para voar, mas, se os soltasse, seriam caçados pelos vizinhos da povoação.

No dia seguinte, levantou-se antes do amanhecer. A correr, subiu ao telhado, agarrou a gaiola e, atravessando os campos, dirigiu-se ao celeiro da povoação. Ali, soltou os pardais:
— Um dia voltarão a voar ao ar livre — prometeu-lhes.
unnamed-7Todos os dias, depois da escola, Ming-Li visitava os pardais e ficava a vê-los voar entre as traves do telhado, apanhando insetos e lagartas.
Mas, quando a primavera chegou, Ming-Li começou a preocupar-se. Quando se fizessem as primeiras colheitas, os agricultores abririam o celeiro. E onde esconderia ela depois os pardais?
O pai e Irmão Mais Velho tinham começado as sementeiras. Ming-Li desejava acompanhá-los.
— Deixem-me ajudar-vos — pedia-lhes todos os dias.
— Tu não és uma camponesa — respondia o pai sorrindo. — És apenas uma menina.

Certo dia de verão, Ming-Li apercebeu-se de que o pai parecia preocupado ao regressar do campo.
— Amanhã vai haver uma reunião com todos os agricultores em frente do celeiro da povoação — disse.
O celeiro da aldeia! O que é que vai acontecer se lá entrarem?
unnamed-8Na manhã seguinte, Ming-Li seguiu o pai. Escondeu-se atrás do celeiro. Os camponeses estavam sentados em círculo, com cara séria.
— Este ano não vou ter grão — disse um. — Os gafanhotos estão a comer tudo.
— As ameixoeiras do pomar estão cheias de bicho! — exclamou outro.
— O gorgulho está a comer o arroz — acrescentou um terceiro.
— E os gafanhotos estão a atacar os pés de soja.
— Haverá fome — disse o pai de Ming-Li. — As nossas famílias vão passar fome.
E todos ficaram em silêncio enquanto caíam na realidade, fria e escura como uma noite de inverno.
Ming-Li não pôde conter-se e saiu do esconderijo.
— É porque não há pardais! Não há pardais que comam os insetos!
— Ming-Li, vai para casa! — gritou o pai.
unnamed-9O mais velho dos camponeses ergueu a mão.
— Ela tem razão — disse. — Os pardais nunca foram nossos inimigos.
— Que interessa isso agora? — disse outro camponês. — O que está feito, feito está.
Ming-Li sussurrou algo ao ouvido do pai que se levantou.
— Mostra-nos.
Ming-Li conduziu os camponeses até ao celeiro e abriu a porta. Susteve a respiração. Qual será o meu castigo?
Assim que as portas se abriram, os sete pardais saíram a voar.
Os camponeses abafaram um grito de espanto.
— A tua filha trouxe-nos um milagre! — exclamaram. — Sete milagres! De hoje em diante, os pardais estarão a salvo na nossa aldeia. E contaremos a quem encontrarmos a sabedoria da Menina dos Pardais.
— Sim — concordou o pai de Ming-Li. — A minha filha é a Menina dos Pardais. Mas é mais do que isso.
Ergueu-a nos braços.
— Ming-Li é uma verdadeira camponesa.

***

Nota da autora

Em 1958, o presidente Mao Tsé-tung declarou guerra aos pardais, culpando-os por comer a maior parte das safras de trigo da China.

O seu plano de ataque era simples: durante três dias e três noites, todos os cidadãos capazes, incluindo as crianças em idade escolar, deveriam passar por uma dada extensão de terra e fazer tanto ruído quanto lhes fosse possível para que os pardais morressem de esgotamento ou de ataque de coração.

O plano revelou-se eficaz porque, findos os três dias, a população de pardais tinha sido completamente dizimada.

No entanto, sem a presença de pardais, a população de gafanhotos atingiu proporções de praga, o que contribuiu para uma fome generalizada que matou entre 30 e 40 milhões de chineses nos três anos seguintes.

Sara Pennypacker
La niña de los gorriones
Barcelona, Editorial Juventud, 2010
(Tradução e adaptação)

Visualizações: 80

Os comentários estão fechados para esta entrada de blog

Fale com os membros

Ola deixe apenas uma mensagem por dia pois por limitações só são guardadas as ultimas 100 mensagens.

Membros da Rede

Menu de Funcionalidades

Membros
Fotos/Videos/Blog
Entretenimento/Ajuda

© 2024   Criado por Adul Rodri (Adm)   Produzido Por

Badges  |  Relatar um incidente  |  Termos de serviço

Registe-se Juntos fazemos a diferença!