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Uma tarde apareceu no centro um médico português a distribuir brinquedos. Viu a menina e estendeu-lhe uma boneca. A menina segurou a boneca com cuidado. Achava-a estranha, muito magra, demasiado pálida, com uma cabeleira escorrida e loura, a lembrar uma espiga de milho bem madura. Algo nela lhe parecia ainda mais estranho: tinha duas pernas.

Não fui testemunha da história se segue, alguém me contou. Mariana, vou chamar-lhe assim, uma menina dos seus sete anos de idade. Vive num centro de recuperação de mutilados na cidade do Cuíto, no interior de Angola. Perdeu uma perna ao pisar uma mina, o que ali, naquele abismo remoto, é uma história banal. Uma tarde apareceu no centro um médico português ao serviço de uma organização não governamental europeia a distribuir brinquedos. Viu a menina e estendeu-lhe uma boneca. A menina segurou a boneca com cuidado. Achava-a estranha, muito magra, demasiado pálida, com uma cabeleira escorrida e loura, a lembrar uma espiga de milho bem madura. Algo nela lhe parecia ainda mais estranho: tinha duas pernas.

Quando o médico regressou ao centro, poucas semanas depois, voltou a reparar em Mariana. A menina parecia feliz com a sua filha loura. Transportava-a às costas, num pano, à maneira tradicional. Falava com ela. Dava-lhe banho. Reparando melhor na boneca, porém, o médico descobriu que faltava a perna esquerda.

"O que aconteceu? Mariana, a tua boneca perdeu uma perna?" A menina olhou assustada.

"Arranquei", disse, "agora, sim, é gente."

Lembrei-me de Mariana ao ler o noticiário sobre a intervenção norte americana na Colômbia. Explico-me melhor: primeiro lembrei-me de uma entrevista de Hélio Luz, antigo chefe da polícia do Rio de Janeiro, defendendo que, se aos Estados Unidos é reconhecido o direito de intervir em países do Terceiro Mundo para combater a produção de cocaína, então aqueles mesmos países deveriam poder entrar em território norte-americano para encerrar as fábricas de armamento. Este argumento parece-me irrespondível se o que estiver em causa for o fabrico de minas antipessoais.

A produção de minas é, na minha opinião, um dos maiores escândalos, senão o maior do nosso tempo. Vale a pena deixar aqui alguns números: cento e dez milhões de minas causam, todos os anos, 26 mil novas vítimas. Existem 350 tipos de minas que custam entre duzentos escudos e trinta contos; para retirar cada um destes explosivos, porém, gasta-se, em média, dez vezes o seu custo. Finalmente, dos cerca de cinco milhões de minas que se produzem em cada ano, a maioria é fabricada nos Estados Unidos da América e nos territórios da antiga União Soviética.

Ao contrário do que muita gente julga, o objetivo da mina não é matar. Este engenho pavoroso foi pensado para mutilar. Um mutilado exige cuidados, custa dinheiro, e ainda por cima afeta negativamente a moral do inimigo – mais, bastante mais, do que um companheiro morto. A perversão foi ao ponto de se inventarem minas coloridas, chamadas borboletas, destinadas a atrair a atenção de crianças.

Uma única vez, experimentei a sensação de caminhar num campo de minas. Não gostaria de repetir a experiência. Foi há alguns anos, viajava num jipe com militares. No meio da viagem, num lugar que parecia muito longe de qualquer guerra, longe da maldade humana, o motorista decidiu parar o carro para que todos pudéssemos sair e desentorpecer as pernas.

Afastei-me alguns metros quando ouvi, de repente, gritar o meu nome. Um dos soldados, junto ao jipe, agitava os braços e repreendia-me dizendo que era perigoso sair da berma da estrada, porque em toda aquela região havia muitas minas.

Não sei se havia ou não. O que sei é que essa possibilidade alterou por completo a forma como, até aquele instante, eu percebi a paisagem. Um segundo antes, eu via abrir-se diante de mim um amplo horizonte verde e vivo; um perfume a terra molhada vibrava no ar; pássaros, cujo nome nunca saberei, cantavam num bosque próximo. Um segundo depois, eu apenas vi o que não era possível ver. Os pequenos animais de carapaça rija escondidos debaixo da lama, à espera de que eu lhes pusesse o pé em cima para assim cumprirem a sua triste missão: explodir. Levei a eternidade para percorrer os trinta metros que me separavam do jipe. Milhões de camponeses vivem com esse terror a cada passo que dão.

Segundo a ONU, seriam necessários mais de mil anos para, com a atual tecnologia, conseguir retirar todas as minas plantadas no mundo. Esta operação custaria 33 mil milhões de dólares. Volto a lembrar que a maior parte destes engenhos não são fabricados num qualquer país-pária por uma organização criminosa de loucos extremistas. São fabricados em países democráticos, com destaque para os Estados Unidos da América. O desafio lançado por Hélio Luz deveria ser levado a sério por todos nós, as vítimas, as vítimas potenciais. A menos que Mariana tenha razão.

José Eduardo Agualusa
in «Pública», suplemento do jornal Público,
24 de setembro de 2000

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