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Esta história foi inspirada pelo sacrifício e coragem dos que lutam para ser livres. Não é invulgar no Tibete os pais mandarem os filhos pelos trilhos das montanhas, na esperança de que estes encontrem refúgio no Nepal. Durante o inverno, quando esses desfiladeiros não são severamente vigiados, o frio agreste é considerado uma ameaça bem menor do que permanecer em casa. Muitas dessas crianças conseguiram chegar ao Nepal, muitas voltaram para trás, e muitas mais, pura e simplesmente, desapareceram. Notas do Autor
Lua, a cadela desta história, é uma terrier tibetana. A raça é muito antiga e tem um passado interessante. Diz-se que os cães eram inicialmente mantidos como companheiros nos mosteiros isolados que existem no que viria a ser chamado “O Vale Perdido do Tibete”. Como eram edificados nas profundezas das montanhas do Himalaia, o percurso de entrada e saída desses mosteiros era muito difícil. Os cães eram inteligentes, leais, e tinham um sentido de orientação infalível. Também se dizia que traziam sorte. Tal como Lua, aprenderam de cor as passagens secretas para entrar e sair das montanhas. Nunca eram vendidos, porque fazer isso seria “vender a sua própria boa sorte.” Os cães eram, no entanto, oferecidos como presentes a pessoas que se tinha em alta estima. Uma destas ofertas foi eventualmente trazida para Inglaterra e tornou-se o fundador da raça dos terriers tibetanos, tal como agora os conhecemos. Com a sua capa dupla de lã e pelo, e largas patas com “sapatos de neve”, os cães eram perfeitamente adequados à vida difícil que tinham de levar. Eram chamados “os homenzinhos” pelos Tibetanos e, como membros da família, esperava-se que cumprissem a sua parte nas tarefas. Assim, tornaram-se guardadores de rebanhos e cães de guarda. Agora, já não têm outras caraterísticas do terrier além do seu tamanho e, devido à sua natureza calma e segura, bem como à sua grande inteligência, são animais de estimação muito queridos das famílias com quem partilham as vidas.

Lua, a Cadelinha do Tibete é uma história acerca da bravura e da força espiritual. É também uma história sobre a família, o espírito de sacrifício, e todas as coisas maravilhosas que o amor pode fazer surgir. Muitas vezes é necessária uma grande coragem para ir em busca das coisas que são importantes para nós, ainda que tenhamos a sorte de ter na nossa vida a dádiva inestimável da liberdade. Mas há muitas pessoas no mundo que nunca irão conhecer esta dádiva. Todos nós merecemos o direito de exprimir o que pensamos, de ler os livros que pretendemos ler, de praticar a nossa religião, e de viver sem sentir medo. Estas são coisas que todos os pais desejam para os seus filhos. Como escritora e educadora, as minhas esperanças para vós — para todas as crianças — são exatamente as mesmas.
Sem Título
Uma manhã bem cedo, o sol elevou-se sobre o topo das montanhas do Tibete. Uma luminosidade pálida espalhava-se por todo o vale e tingia de rosa suave as paredes de um antigo mosteiro. Os monges que ali viviam estavam a pé há muitas horas, cantando e orando. Depois, partiriam para os seus afazeres, e os sons que enchiam as manhãs atarefadas flutuariam através do fino ar da montanha.
Tenzin saiu para varrer as escadas. Um pequeno cãozito seguiu-o. Havia outros cães no mosteiro, mas esta fêmea, Lua, tinha elegido o jovem monge como seu dono. Ora o seguia pelos corredores sombrios, ora ficava ao lado dele, imóvel como um leãozinho de pedra, quando ele fechava os olhos em oração. À noite, quando Tenzin se instalava na sua cama estreita, Lua enroscava-se em volta dos seus pés.
Ali, no mosteiro, a vida era vivida em paz.
Como todos os cães do mosteiro, Lua passeava pelas encostas das montanhas. Devido ao seu pelo espesso, o vento e o frio não a incomodavam. Os seus pés largos e chatos ajudavam-na a caminhar com segurança sobre o solo invernoso. Tenzin costumava vê-la a subir cada vez mais alto até que, finalmente, desaparecia para além da montanha. Mas o monge não se preocupava, porque a cadelinha conhecia os trilhos da montanha melhor do que qualquer outro cão.
E o tempo ia passando, tranquilo e calmo. Um dia, ao fim da tarde, quando Tenzin estava sentado a meditar perto da porta do mosteiro, ouviu um som. Lua também ouviu. A cadelinha levantou a cabeça e ficou a olhar para a escuridão. Muito devagar, duas crianças saíram do meio da neblina.
Tenzin já antes tinha visto crianças assim, embora poucas fossem tão jovens. Tentavam atravessar para o Nepal, na esperança de serem livres. Caminhavam apressadas em plena noite, para poder escapar aos soldados que guardavam as fronteiras.
Sem Título— Já chegámos? — perguntou a menina, que se agarrava firmemente à mão do rapazinho. — Já estamos no Nepal?
— Não. Ainda não — respondeu Tenzin, sem coragem para lhes dizer que a viagem ainda iria ser longa e perigosa.
Depois de Lua ter cheirado as pernas deles, deixou-os entrar.
Os monges levaram as crianças até perto do fogo. Foi servida sopa quente e a menina falou devagar enquanto comia. A mãe deles tinha-os mandado partir já há muitos dias. “Vocês têm que atravessar as montanhas e deixar o Tibete,” tinha ela dito. “Depois serão livres.”
Vestira-os com camadas de camisolas e calçara meias grossas nos seus pés. Sabia que os filhos teriam que partir no inverno, quando os desfiladeiros não eram tão cuidadosamente vigiados, mas temia que eles se perdessem para sempre no meio das tempestades impiedosas e das neves profundas.
— Tu vens também, mãe? — perguntou o filho.
— Claro que vou — respondeu ela, calmamente.
A mãe não conseguira encarar os olhos tristes da filha.
— Até eu partir, eis o que vocês têm de fazer — disse, desenrolando uma peça de tecido.
— Uma bandeira de orações — exclamou o rapaz, que adorava ouvir o adejar das bandeiras ao sabor do vento.
— Tens de manter isto junto ao coração — disse a mãe, dobrando a bandeira e aconchegando-a junto à pele do filho. — Quando chegarem ao Nepal, amarrem-na a um templo e deixem-na flutuar ao vento. As orações que vou enviar convosco vão elevar-se aos céus e voltar para mim. Nessa altura, saberei que estão a salvo.
As crianças pareciam ter caminhado durante uma eternidade, seguindo as estradas pedregosas que serpenteavam através das montanhas. Finalmente, tinham chegado ao mosteiro. Tenzin abanou a cabeça enquanto os observava, cabeceando cheios de sono sobre as taças de sopa. Embora tivessem viajado de muito longe, iriam provavelmente ficar por ali. “Vão mandá-los regressar”, sussurrou para si próprio.
Durante toda a noite, Tenzin ficou acordado, a pensar no que deveria fazer. Antes do amanhecer, levantou-se e orou com os outros monges. Depois, dirigiu-se para as portas do mosteiro, seguido por Lua e pelas crianças.
— Os guardas não vos vão deixar passar — disse-lhes. — Não podem ir pela estrada da montanha.
— Mas só conhecemos esse caminho — disse-lhe a rapariga.
— A Lua conhece outros — respondeu Tenzin.
Ajoelhou-se para afastar o longo pelo dos olhos da cadelinha e pediu:
— Leva-os. Mostra-lhes o caminho.
Lua olhou para a cara de Tenzin por momentos e depois saiu em direção às montanhas. A menina ia agarrada à mão do irmão e o rapaz ia agarrado à cadelinha. Tenzin observou-os durante longos momentos. Mesmo antes das três figuras desaparecerem para além das montanhas, teve a certeza de que viu a pequena cabecinha de Lua voltar-se para olhar para trás, para ele. Depois, desapareceram.
Todos os dias Tenzin espiava as encostas das montanhas, mas não via Lua. Orava e voltava para os seus estudos. À noite, dormia sozinho, sentindo uma dor no coração, no lugar onde em tempos só a paz tinha existido.
Os dias tornaram-se semanas. O verão passou a outono e, quando o inverno chegou, o mosteiro ficou como que enclausurado pela neve.
Numa manhã fria de primavera, Tenzin pôs-se a caminhar em direção aos raios do sol. Pingentes de gelo soltavam-se dos beirais do mosteiro e manchas de terra molhada brilhavam na encosta da montanha. Então, uma das manchas moveu-se e um latido soou! Uma pequena forma desceu lentamente a ladeira. Tenzin correu ao encontro de Lua. Pegou nela e transportou-a para o mosteiro.
Os monges deram mostras de regozijo, enquanto acariciavam e mimavam Lua. O seu pelo estava sujo e emaranhado, e as almofadinhas das suas patas estavam feridas. Quando Tenzin lhe fez festas nas orelhas e no pescoço, apercebeu-se de algo. Por baixo do longo pelo do cão estava um rolo de tecido. Tenzin desatou-o e agitou-o.
“A bandeira das orações,” murmurou, surpreendido.
Com Lua e os monges a segui-lo, Tenzin saiu do mosteiro e, com cuidado, prendeu a bandeira a uma corda, para que pudesse flutuar ao vento.
Mais tarde, nessa noite, Tenzin estava deitado na cama. Lua estava enroscada aos seus pés, imóvel, mas sempre em guarda. De repente, levantou a cabeça, ouvindo qualquer coisa que só os cães conseguiriam ouvir. Era um som tão doce como as risadas distantes de crianças felizes, um som tão suave como o sorriso de uma mãe. O som desvaneceu-se como fumo na escuridão.
Lua, a cadelinha, baixou a cabeça e fechou os olhos.
E, de novo envoltos em paz, ela e Tenzin adormeceram.


Maxine Trottier
Little dog Moon
Toronto, Stoddart Kids, 2000
(Tradução e adaptação)

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