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Porque pensava diferente dos que chefiavam seu país, aquele homem estava preso.
Ficava sozinho numa cela. Mas uma vez por dia iam buscá-lo e o levavam para apanhar sol. Era importante que apanhasse sol, para não morrer. Os que o mantinham preso não queriam que morresse.
Lá fora era uma espécie de grande jardim rodeado de muros altos e vigiado. Na verdade, nem era um jardim, porque não tinha asseio de canteiros. Mas jardim, sim, no pensamento do homem, porque tinha flores, as árvores desenhavam manchas de sombra no chão, e havia pássaros.
Todos os dias, então, o homem juntava a alegria de que dispunha, para receber a hora de sair. E era sempre sorrindo na alma que passava pela porta maior, entrando na luz. No rosto não, não sorria, porque não queria que seus carcereiros soubessem.
No início, quando saía, levava um livro para ficar lendo deitado na grama, naquele que era o seu recreio. Depois percebeu que o livro era desnecessário porque, embora tendo-o aberto diante de si, não o lia, o olhar preferindo pousar sobre as folhas, os talos de grama, as nuvens, verde e azul que lhe faziam tanta falta no monótono cinza da cela.
A partir daí começou a levar um pedaço de pão. O pão, sim, era importante para aproveitar melhor aquela hora. Botava um pedaço na boca e ficava mastigando, mastigando.
Primeiro era gosto de pão mesmo. Depois, com a saliva ia virando gosto de trigo e, deitado ao sol, de olhos fechados o homem podia imaginar-se num trigal, com alguma água por perto, de fonte ou rio, que corria clara e na qual banhava o rosto quando tivesse vontade.
Foi por causa do pão que o passarinho chegou mais perto. Não muito, é claro. Mas um pouco mais que os outros. O suficiente para que o homem reparasse nele e passasse a observá-lo com atenção.
Queria as migalhas. Tinha uma cabecinha delicada e redonda que inclinava para o lado como se pensasse coisas importantes. E talvez pensasse. Os olhos também eram redondos, brilhantes, como se duros. E duro era certamente o bico com que ciscava o chão sem se descuidar da perigosa proximidade do homem.
“Eis”, pensou o homem, "um passarinho corajoso!" E espalhou migalhas sobre a grama, recuando alguns passos para que ele pudesse vir buscá-las.
No dia seguinte, mal se lembrava do passarinho.
E novamente, enquanto partia pedaços de pão para levar à boca, ele se destacou dos demais e se aproximou saltitando, pronto a voar ao menor perigo, mas arriscando-se sempre um pouco mais. E novamente o homem premiou com migalhas a sua coragem.
Assim começaram a se entender. E a partir de então o homem percebeu que à alegria de sair juntava-se outra, a alegria de um encontro.
Agora, cada vez que cruzava a porta maior mergulhando no sol, perguntava-se se o passarinho estaria lá, esperando-o. E estava.
Durante semanas o homem tomou o cuidado de manter-se quieto, quase imóvel, enquanto o passarinho se aproximava. Depois, movendo-se bem devagar, com idênticos gestos, deixava cair as migalhas e recuava alguns passos. Sempre igual, para que o outro entendesse que ele não representava riscos.
E o passarinho vinha, dava uns saltitos, parava, inclinava a cabeça olhando para ele, dava mais uns saltitos, parava, tornava a saltitar. Até chegar às migalhas e ciscar, sempre atento às atitudes do homem.
Essa era a forma que tinham de conversar. E para o homem que não falava com ninguém, era uma longa conversa.
E um dia, recuou um passo a menos. O passarinho hesitou, mas veio.
Percebendo que tinha feito uma conquista, o homem deu tempo para que o seu pequeno amigo se acostumasse. Mas daí a muitos dias, novamente encurtou a distância e o passarinho veio.
Uma alegria maior sorriu no peito do homem. Sabia que era questão de tempo e paciência.
E ele tinha muito de ambos.
Pouco a pouco, sem nada fazer que pudesse assustá-lo, foi trazendo o passarinho para junto de si. Recuava menos. Deixava cair as migalhas em duas reprises, fazendo com que, comidas as primeiras e vendo outras tão ao seu alcance, o passarinho se aproximasse mais.
Nesse jogo, passaram-se meses. E é provável que o coração do passarinho não batesse mais acelerado no dia em que veio buscar as suas migalhas entre aqueles dois sapatos escuros. Mas o do homem bateu.
Faltava ainda muito, porém. Porque a distância entre os sapatos e a mão era talvez mais difícil de superar do que os metros de gramado que já haviam sido vencidos. Mas o tempo não parecia ter nenhum limite. E a paciência se fazia maior à medida que aumentava o amor.
Foram-se os meses. Alguns. Muitos, talvez. E, de murmúrio em murmúrio espalhou-se na prisão que aquele homem havia domesticado um passarinho. E que todos os dias, quando cruzava a porta maior, vinha o amigo entre cantos e bater de asas, comer na sua mão.
Breve, os homens das outras celas quiseram ver. Alguns ficaram olhando pelas janelinhas, entre as grades. Outros, que saíam com ele, passaram a acompanhar os seus passos no jardim.
E todos viram e comprovaram: havia um passarinho que confiava em um homem, e lhe fazia festa, e pousava nos seus dedos para comer migalhas na palma aberta.
Outros tentaram fazer a mesma coisa, desejosos de também ter os seus amigos. Mas, apesar do desejo e das migalhas, nenhum conseguiu. Então aquele único passarinho, que só atendia àquele homem, tornou-se um pouco o passarinho de todos.
E, foi talvez por isso que, embora uma luz de vitória se acendesse nos olhos de todos eles, nenhum fez um gesto ou soltou uma exclamação no dia em que o homem prendeu uma migalha entre os dentes e o passarinho veio colher a comida no seu sorriso.
Passou o verão. Chegou o inverno. Mas o inverno não era rigoroso naquele país, havia flores, os pássaros não migravam.
Daí o espanto do homem no dia em que o amigo não foi buscá-lo à entrada do jardim. Não veio buscá-lo nem apareceu adiante. Pela primeira vez. E a hora que era para ser feliz esticou-se comprida e inútil por entre a sombra das árvores.
No dia seguinte, uma ponta de angústia feria o homem na sua cela, à espera de sair. E, caminhando para a porta maior, tentou ouvir ao longe o canto do seu pássaro amigo lhe dizendo porém que, além do sol, nada o esperaria para lá dos pesados batentes.
O passarinho não veio naquele dia. Nem no outro. Nem em outro qualquer.
A princípio, o homem quis inventar justificativos. Pensou que havia sido caçado, ou que havia partido para nidificar. Pensou que havia encontrado migalhas mais fartas ou fáceis. Pensou coisas assim, que diminuíssem sua tristeza pela perda do amigo.
Só depois, quando ela ia quase diminuindo, pensou a coisa mais simples. Que o passarinho tinha seguido o seu destino, fosse qual fosse. Um destino que o levava para longe dali. Como o dele, um dia, também o levaria, longe daquele jardim, para sempre longe daqueles muros.

Marina Colasanti

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Comentário de Ana Cruz Nobre em 11 maio 2020 às 20:40

Bonito texto meu amigo!
Grata

Comentário de Marta Maria (adm) em 9 maio 2020 às 23:18

A amizade é assim. Tem que ser conquistada devagarinho. É como uma semente que deve ser regada com carinho para poder ir crescendo.
Já nos fala Millôr Fernandes: "A verdadeira amizade é aquela que nos permite falar, ao amigo, de todos os seus defeitos e de todas as nossas qualidades". E complemento com outra frase do Mario Quintana: "A amizade é um amor que nunca morre."
Obrigada Adul, por tua amizade... beijinhos

Comentário de Conceição Valadares em 9 maio 2020 às 20:06

Lindo texto meu amigo

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